outubro 30, 2012

As vantagens de ser um perdedor


O ventilador na mesa de centro fazia um ruído engraçado enquanto girava pela sala vazia, exceto por mim e a recepcionista que tagarelava no telefone com alguma mulher chamada Carly.
Há meia hora eu tentava sem muito sucesso concentrar-me na revista sensacionalista em meu colo. A capa era estampada com a foto de alguma atriz que era criticada por ter engordado 8 quilos para a nova novela em que interpretaria uma jovem que enfrenta bulimia. A manchete era escrita com letras garrafais, e levava a seguinte frase: “Até onde a ganância pelo sucesso pode nos levar?”. É óbvio que a moça era um estereótipo da mulher de hoje, mas nada era mais perturbador para mim no momento do que o falatório descompassado da recepcionista.
Eu estava sentindo falta. Era isso o que sentia. Não posso chamar de saudade, não. É a necessidade de poder usar, e ver-me livre dos problemas, dos médicos e dos psiquiatras. Poder sorrir e não me preocupar em prevenir a todos de que desta vez não irei perder o controle. Sorrir e sentir o êxtase viajar por minhas veias.
Larguei a revista e procurei me concentrar nos pontinhos pretos das cortinas. Nunca havia visto um tecido tão peculiar, e que parecesse tão sujo e amarelo. Não me importei em fazer críticas mentais. Naquele momento eu apenas queria exercitar minha mente e esquecer os prazeres que estavam tão longe de mim.  Novamente, não obtive sucesso.

Ah, daria um doce para fugir deste lugar.

Encostei a cabeça na parede atrás de minha cadeira desconfortável. Explorei cada centímetro do teto cor de abóbora da clínica, e depois cerrei os olhos. Ouvi meus próprios batimentos cardíacos, minha respiração acelerada pela aflição; pela urgência em fumar um baseado qualquer. E ouvi o ventilador, e de repente aquele me pareceu ser o som mais agradável que já ouvira.
Eu gostaria de ser como ele. Gostaria de repelir. Gostaria de aliviar. Gostaria de ser um ser sem vida, que não causaria mais problemas. Eu poderia ser o ventilador de teto da sala de estar dos meus pais, assim seria um alguém inanimado, porém, presente. E poderia agraciá-los com um vento refrescante quando sentissem calor, e eles sentiriam alivio. Seria muito mais do que já fiz por eles até hoje.
Soltei um risinho baixo diante da minha demência. Engraçado como eu parecia mais racional quando estava chapada.

Ouvi os sinos da porta soarem com veemência, despertando-me de meus pensamentos com meus botões. Um homem entrou na sala. Era muito alto, e usava uma camisa cinza por baixo da jaqueta de couro. Um jeans que parecia ser extremamente caro e o último modelo (ou talvez não) de tênis lançado pela Nike nos pés. Os cabelos eram castanhos, muito longos, e ele tinha sobrancelhas naturalmente arqueadas, o que eu achava muito divertido em pessoas que usufruíam dessa dádiva de Deus.
Seu nariz era pontudo, tinha sardas pequenas e um tanto fofas demais para alguém de aparência tão abusiva. Os olhos eram azuis, brilhantes como as estrelas. Sei que a comparação soou muito poética, mas seus olhos eram brilhosos demais.
E também estavam vermelhos.

Senti uma tremenda vontade de rir. É claro que ninguém viria a um psicólogo especializado em tratamentos de desintoxicação porque era um puritano ou algo o tipo.
Ele focou seus olhos em mim quando percebeu minha presença. Suspirou fundo e sentou-se ao meu lado. Talvez tivesse chegado cedo demais e não estivesse a fim de papo. Mas ficou ali, entrelaçando os dedos nervosamente, sem mexer qualquer outra parte do corpo. Típico.
Cruzei as pernas e voltei ao meu ritual de ventilador/quero ser. Fechei os olhos novamente, e quando estava quase cochilando, senti algo quente encostar-se a meu ombro. Presumi que o homem ao meu lado havia endireitado a coluna, até que uma voz demasiadamente aveludada e assustadoramente calma falou comigo.

“Eu gostaria de nunca ter que voltar aqui”.
“Eu também não.“ Confessei em um sussurro, ainda de olhos fechados.

“Há quanto tempo você vem?” Talvez ele estivesse nervoso demais e quisesse bater um papo para descontrair. Resolvi ser legal.

- Dois anos, sete meses e catorze dias. – Respondi, abrindo os olhos e focando meus olhar em seu rosto amedrontado de menino, que tentava o tempo todo parecer forte o suficiente para enfrentar tudo. Porém, ele não era. Ninguém é. – Posso te dar as horas e os minutos também.

Ele soltou um sorriso nervoso, e desfez os laços das mãos. Seu olhar procurou o meu, e percebi que ele não era um menino amedrontado ou algo do tipo. Era um homem um tanto perturbado, mas a sua aparência ao acusava. Não sei como sua mãe não o estava acompanhando.

- E você? – Arrisquei.
- Quatro meses. Não me lembro dos dias e nem das horas, mas posso afirmar que nunca foi um passeio agradável. – Ele me estendeu a mão esquerda. – Sou Zachary.
- Florence. – Deslizei meus dedos pela sua mão de dedos longos. Trocamos um aperto de mão firme, e logo eu acabei com o toque.
- Engraçado. Nunca conheci alguém com seu nome. – Comentei, enquanto admirava a fivela de minha sapatilha.

- Também nunca encontrei alguém com seu nome. Florence... – Ele saboreou a palavra com muito mais doçura e ironia que o necessário, e eu tive vontade de rir.

Ele voltou a curvar a coluna, e tirou do bolso da jaqueta um isqueiro, e começou a brincar com o fogo que saia do objeto. Eu entendia o nervosismo dele. Entendia bem demais.

- Você veio por vontade própria?

Eu achei que seria eu quem faria esta pergunta, mas Zachary apressou-se em formulá-la antes de mim. Não sabia se queria responder a essa questão, mas não negava que era o que outro paciente perguntaria ao colega numa sala de espera.

- Não.

Ele esperou, com os olhos fixos no fogo. Cogitei em avisá-lo que olhar muito para o fogo causa estrabismo, ou era isso que minha mãe dizia quando eu era pequena e brincava de acender fósforos.

- Meu pai me arrastou para uma clínica há alguns anos, e agora que meu caso se tornou “estável”, faço as consultas mensais. – Murmurei, pensando se já havia contado isso para alguém. Não conseguia me lembrar.

Ele riu, e eu franzi o cenho. Parou o isqueiro e voltou-se para mim, mexas de seu cabelo caindo sobre seu rosto pálido. De repente, o achei muito bonito.

- Eu vim por vontade própria. Já faz um tempo... Comecei com o psicólogo há pouco tempo. Tudo tem sido muito insuportável, e às vezes a recaída me leva até as bocadas de sempre. A vontade tem diminuído mais rápido do que eu esperava, mas ainda não consigo controlar tudo como eu queria. Gostaria ter o poder de parar de torrar o dinheiro da família nessas merdas... Era mais fácil quando eles nem notavam que eu existia... – Ele enroscou as mãos no cabelo, segurando a cabeça num gesto exausto e culposo. Senti compaixão por ele. Há algum tempo eu também me desesperava por umas gramas de êxtase. Aliás, até poucos minutos eu sentia o peso da família em meus ombros, o peso de não dar orgulho aos pais, a ninguém, nem a si próprio. Eu sabia o que Zachary estava sentindo. Eu sabia exatamente o que dizer, e também sabia que ele não ia acreditar.

Pousei a minha mão em seu ombro. Talvez estivesse protelando muito o ato, mas precisava reconfortar alguém que tinha a vontade de se livrar dos temores, das crises e da alucinação temporária que o fazia feliz, completo, ou talvez só lhe desse prazer suficiente por algumas poucas horas.

- Depois de um tempo, tudo fica bem. Fica mais claro e mais fácil.

Ele olhou em meus olhos com tanta profundidade, que esperei que ele se levantasse e desse-me um soco bem no meio da cara. Contudo, ele apenas moveu o queixo maciço, e formou um pequeno sorriso agradecido com os lábios rosados. Senti um alívio repentino pelo gesto dele em agarrar a minha mão, para logo depois soltar, um tanto desajeitado, mas totalmente sincero.

Zachary e eu continuamos a nos ver depois daquele dia. Ele me pagava um café na Street e eu lhe falava do meu trabalho de redatora na Orange, uma revista nerd para adolescentes curiosos e inteligentes. Zac gostava muito de ouvir sobre as matérias antes que elas fossem publicadas, e nós debatíamos sobre os assuntos mais bizarros que eram pesquisados para a revista.
Depois que eu contava tudo, ele me falava da faculdade. Foi uma surpresa quando contou-me que havia retomado o curso de matemática. Zachary adora números.
Um ano depois ele já estava mais acostumado ao psicólogo, e eu já frequentava a clinica duas a quatro vezes ao semestre. Zachary melhorou seu relacionamento com os pais. Eles já não davam mais dinheiro, e nem perguntavam a ele como ele gastava seu salário de professor. E com o tempo, Zac levou-me para conhecer seus pais e irmãos, e pude perceber o quanto sua família era rica e totalmente aconchegante.

Sempre questionei a mim mesma o porquê de ter sido uma usuária. Minha família era simples, porém sempre fui rodeada de carinho e atenção o suficiente para evitar as festas e os amigos errados. Talvez Zac fosse agraciado com o mesmo, somado ao dinheiro que obtinha a qualquer hora.
Depois de alguns poucos verões, nos mudamos para um "apartamentinho" apertado em Manhattan, que era o suficiente para que nós fizéssemos de lá o nosso lar. Rolávamos de sofá à tapete, fazendo amor até o dia clarear, e pela primeira vez em anos, eu me sentia completa. Sem o prazer fugaz, a alegria momentânea e a adrenalina em fazer loucuras que me poderiam por-me na cadeia.

Minha garganta não estava seca. Eu não suava frio. Eu não ansiava o momento em que usufruiria da droga. Eu sentia a liberdade como uma brisa gelada a bater em meu rosto. Eu vivia os momentos mais simples de minha vida que quase havia sido jogada fora pela própria dona. E eu finalmente sentia que os tons da minha felicidade eram muito, muito mais prazerosos. Eu nunca trocaria o bom pelo nada.
E Zachary estava comigo. Isso era o que realmente me importava. 

outubro 15, 2012

Tato


Nada poderia ser mais prazeroso do que deslizar meus dedos sobre elas. Eu tocava suas brancas e pretas, e ela suplicava que eu continuasse, pedindo clemência nos sons que emitirá. Os grunhidos que perturbavam o meu controle, e roubavam a pouca decência que tinha até sentar-me a frente delas.
Deixei que minha mão esquerda as torturasse. Com uma força mais abrupta, eu a fiz gritar no grave. E depois eu a acometi de delicadeza. O fulgor de nossa relação não cabia em mim. Toquei com rapidez, sugeri movimentos que nem eu mesmo sabia que era capaz de realizar, e no gozo das brancas e pretas, eu fiz uma pausa. Um remake de nosso pecado silencioso. Não deixaria de tocá-las, de fazê-las gritar sob meus dedos.
E a suavidade que preenchia os meus ouvidos era mais que essencial, era perfeita. Eu sofria da decadência de possuí-las. Eu desejava acima de qualquer outro sonho, tocá-las. Eu voltava com loucura, em total transe de paixão. Deixava as minhas marcas feitas pela força de minha vontade, e no fim eu sabia o que era o meu sentimento antes oprimido.
Eu era a música. Eu fazia música. O prazer de tocar minhas teclas estava num pedestal acima de qualquer outro para mim. Eu pecava com o piano, e fazia a heresia soar para todos que quisessem ouvi-la.
Eu amava a música. Amava as pretas e brancas, que cantavam sob meu toque. 

outubro 09, 2012

Adorável clichê



Quem nunca sonhou? Sonhos são relativamente pequenos e anormalmente grandiosos demais para os nossos pequenos corações. E eles sempre mudam. Adaptam-se a nossas recentes escolhas, nossos novos caminhos e objetivos.
O importante de viver hoje, é saber que adoráveis clichês existem, e que sonhos podem fazer parte da nossa realidade. Basta você sofrer o suficiente para realizá-lo, ou como dizem por ai, "acreditar". No fim das contas, tudo valerá a pena.



Evanescence em São Paulo, dia 07 de outubro de 2012.